Mário Cesariny (1923-2006)
(Pranto por Tuparamaru,
Natural de Lisboa, foi na Escola António Arroio que conheceu alguns dos seus futuros companheiros surrealistas. Já nos anos 40 têm lugar as primeiras intervenções do grupo de surrealistas portugueses, reunidos nos cafés da capital, inspiradas no absurdo e no insólito. Mas apenas em 1947 se dá um contacto mais formal com o movimento surrealista internacional, então já numa segunda fase. Cesariny conhece André Breton, o autor do manifesto surrealista, em Paris. Nesse mesmo ano forma-se o Grupo Surrealista Português, que incluia também, entre outros, Alexandre O’Neill e António Pedro. Dissidente deste primeiro grupo, Cesariny forma um outro, Os Surrealistas, a que se associam António Maria Lisboa, Pedro Oom, Carlos Calvet e Mário-Henrique Leiria. As primeiras exposições surrealistas datam de 1949 e 1950, e nelas Cesariny
expõe algumas das suas obras.
Nos últimos anos, Cesariny quase desapareceu da vida pública. Deixou de escrever poesia. Os amigos e antigos companheiros da aventura surrealista foram morrendo; a Lisboa dos cafés, que era o habitat do seu quotidiano e da sua poesia (‘nunca escrevi um poema em casa’, dz o poeta também em Autografia), desapareceu. Em 2004 saíu Autografia, um documentário de Miguel Gonçalves Mendes sobre o poeta e o homem. Em 2005 aceitou o Prémio Vida Literária da APE e foi condecorado pelo Presidente da República com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
A realidade, comovida, agradece
mas fica no mesmo sítio
(daqui ninguém me tira)
chamado paisagem
Tantos escritores
A realidade, comovida, agradece
e continua a fazer o seu frio
sobre bairros inteiros na cidade
e algures
Tantos mortos no rio
A realidade, comovida, agradece
porque sabe que foi por ela o sacrifício
mas não agradece muito
Ela sabe que os pintores
os escritores
e quem morre
não gostam da realidade
querem-na para um bocado
não se lhe chegam muito pode sufocar
Só o velho moinho do acordeon da esquina
rodado a manivela de trabuqueta
sem mesura sem fim e sem vontade
dá voltas à solidão da realidade.
Titânia e a cidade queimada
sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra
o meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado
à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
( antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa )
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
e eu o pico Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente - tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris - já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião - não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais - também, já por cá
passaram.
Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra
uma carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde
passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnifica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha-férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
e é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-las semi-mortas à linha
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
em franca ascensão para ti O Magnifico
na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais
nem
lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu
partido de manhã encontrado perdido entre
lagos de incêndio e o teu retrato grande!
A manhã está tão triste
que os poetas românticos de Lisboa
morreram todos com certeza
Santos
Mártires
e Heróis
Que mau tempo estará a fazer no Porto?
Manhã triste, pela certa.
Oxalá que os poetas românticos do Porto
sejam compreensivos a pontos de deixarem
uma nesgazinha de cemitério florido
que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de
recorrer à vala comum.
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